Tomo II – Poesias – Mares Brancos de Palavras

Motivo

Poema: Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
E a minha vida está completa.
Não sou alegre, nem sou triste:
Sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
-mais nada.

Voz: Andréia Pedroso
Violões de 6 cordas: Artur Gouvêa e Antonio Jardim
Violão de 8 cordas: Eduardo Gatto

OBS: Em alguns poemas de Cecília Meireles a grafia é original conforme publicação da obra poética. A acentuação foi preservada de acordo com a publicação do poema.

Itinerário

Poema: Cecília Meireles

Primeiro, foram os verdes
e águas e pedras da tarde,
e meus sonhos de perder-te
e meus sonhos de encontrar-te…

Mas depois houve caminhos
pelas florestas lunares,
e, mortos nos meus ouvidos,
mares brancos de palavras.

Achei lugares serenos
e aromas de fonte extinta.
Raízes fora do tempo,
com flores vivas ainda.

E eram flores encarnadas,
por cima das folhas verdes.
(Entre os espinhos de prata,
só meus sonhos de perder-te…)

Canção da Tarde no Campo

Poema: Cecília Meireles

Caminho do campo verde,
estrada depois de estrada.
Cerca de flores, palmeiras,
serra azul, água calada.

Eu ando sòzinha
no meio do vale
Mas a tarde é minha.

Meus pés vão pisando a terra
que é a imagem da minha vida:
tão vazia, mas tão bela,
tão certa, mas tão perdida!

Eu ando sòzinha
por cima de pedras.
Mas a flor é minha.

Os meus passos no caminho
são como os passos da lua:
vou chegando, vais fugindo,
minha alma é a sombra da tua.

Eu ando sòzinha
por dentro de bosques.
Mas a fonte é minha.

De tanto olhar para longe,
não vejo o que passa perto.
Subo monte, desço monte,
meu peito é puro deserto.

Eu ando sozinha,
ao longo da noite.
Mas a estrêla é minha.

Província

Poema: Cecília Meireles

Cidadezinha perdida
no inverno denso de bruma,
que é dos teus morros de sombra,
do teu mar de branda espuma,

das tuas árvores frias
subindo das ruas mortas?
Que é das palmas que bateram
na noite das tuas portas?

Pela janela baixinha,
viam-se os círios acesos,
e as flôres se desfolhavam
perto dos soluços presos.

Pela curva dos caminhos,
cheirava a capim e orvalho
e muito longe as harmônicas
riam, depois do trabalho.

Que é feito da tua praça,
onde a morena sorria
com tanta noite nos olhos
e, na bôca, tanto dia?

Que é feito daquelas caras
escondendo o seu sêgredo?
Dos corredores escuros
com paredes só de mêdo?

Que é feito da minha vida
abandonada na tua,
do instante de pensamento
deixado nalguma rua?

Do perfume que me deste,
que nutriu minha existência,
e hoje é um tempo de saudade,
sôbre a minha própria ausência?

Canção nas Águas

Poema: Cecília Meireles

Acostumei minhas mãos
a brincarem na água clara:
por que ficarei contente?
A onda passa docemente:
seus desenhos – todos vãos.
Nada pára.

Acostumei minhas mãos
a brincarem na água turva:
e por que ficarei triste?
Curva e sombra, sombra e curva,
cor e movimento – vãos.
Nada existe.

Gastei meus olhos mirando vidas
com saudade.
Minhas mãos por águas perdidas
foram pura inutilidade.

Canção – Que Ousarás Contar da Lua?

Poema: Cecília Meireles

Não sou a das águas vista
nem a dos homens amada;
nem a que sonhava o artista
em cujas mãos fui formada.
Talvez em pensar que exista
vá sendo eu mesma enganada.

Quando o tempo em seu abraço
quebra o meu corpo, e tem pena,
quanto mais me despedaço,
mais fico inteira e serena.
Por meu dom divino faço
tudo a que Deus me condena.

Da virtude de estar quieta
componho meu movimento.
Por indireta e direta,
perturbo estrelas e vento.
Sou a passagem da seta
e a seta, – em cada momento.

Não digas aos que encontrares
que fui conhecida tua.
Quando houve nos largos mares
desenho certo de rua?
E de teres visto luares,
que ousarás contar da lua?

Respiro Teu Nome

Poema: Cecília Meireles

Respiro teu nome.
Que brisa tão pura
súbito circula
no meu coração!

Respiro teu nome.
Repentinamente,
de mim se desprende
a voz da canção.

Respiro teu nome.
Que nome? Procuro…
– Ah! teu nome é tudo.
E é tudo ilusão.

Respiro teu nome.
Sorte. Vida. Tempo.
Meu contentamento
é límpido e vão

Respiro teu nome.
Mas teu nome passa.
Alto é o sonho. Rasa,
minha breve mão.

Cantar

Poema: Cecília Meireles

Cantar de beira de rio:
água que bate na pedra,
pedra que não dá resposta.

Noite que vem por acaso,
trazendo nos lábios negros
o sonho de que se gosta.

Pensamento do caminho
Pensando o rosto da flor
que pode vir, mas não vem.

Passam luas – muito longe,
Estrelas – muito impossíveis,
nuvens sem nada, também

Cantar de beira de rio:
o mundo coube nos olhos,
todo cheio, mas vazio.

A água subiu pelo campo,
mas o campo era tão triste…
Ai!
Cantar de beira de rio.