
A Louca
Poema: Augusto dos Anjos
Quando ela passa: — a veste desgrenhada,
O cabelo revolto em desalinho,
No seu olhar feroz eu adivinho
O mistério da dor que a traz penada.
Moça, tão moça e já desventurada;
Da desdita ferida pelo espinho,
Vai morta em vida assim pelo caminho,
No sudário de mágoa sepultada.
Eu sei a sua história. — Em seu passado
Houve um drama d’amor misterioso
— O segredo d’um peito torturado —
E hoje, para guardar a mágoa oculta,
Canta, soluça — coração saudoso,
Chora, gargalha, a desgraçada estulta.
Aquele Barco
Poema: Gaius Valerius Catullus; Verona, 87 ou 84 a.C. – 57 ou 54 a.C
Tradução: Fábio Frohwein
Catullus IV, v. 1-8
Phasellus ille, quem videtis, hospites,
ait fuisse navium celerrimus,
neque ullius natantis impetum trabis
nequisse praeterire, sive palmulis
opus foret volare sive linteo. [5]
et hoc negat minacis Hadriatici
negare litus insulasve Cycladas
Rhodumque nobilem horridamque Thraciam […]
Catulo 4, v. 1-8
Aquele barco que vocês agora veem
diz que seria a mais veloz embarcação.
Nenhum navio venceria seu poder,
quer fosse necessário ter que voar
com velas ou tivesse ainda que também [5]
por remos superar quem fosse o rival.
E isto negam renegar o assustador
mar Adriático e ilhas Cicladas […]
Epitáfio
Poema: Guinga (Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar)
Mar afora
Mata a adentro
Só sei que vou-me embora
Sem acompanhamento
Vou saindo a capela
Nenhum constrangimento
Mar afora
Mata a dentro
Sem paletó e gravata
Nem cravo na lapela
Junta minhas cinzas numa caixa
E entrega tudo a ela
Mata afora
Mar adentro
Por incrível que pareça
Poema: Guinga (Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar)
Relampião rabiscou
Fez um garrancho no céu,
Capitão Gancho enganchou
O fancho no meu chapéu,
Cavalos subiram as nuvens
Em trovoada e tropel
Choveu granizo a granel.
Fui capataz corajoso,
Mas já perdi meu troféu.
Cobri de medo e arrepio
Em maranhenses lençóis,
Invadia a fortalezas
Procurando meus heróis.
O profeta Gentileza nos pilares do Cajú
Damião Experiença de Candelária a Bangu
Por incrível que pareça
Eu nunca conto vantagem
É que aproveito a viagem
Que sempre faço contigo
Tu na cadeira de rodas
E eu amparando o amigo.
Ondas Novas ao Mar
Poema: Quinto Horácio Flaco; Venosa, 65 a.C. – Roma, 8 a.C
Quintus Horatius Flaccus, 1.14
Tradução: Walace Pontes
[…] vīx dūrārĕ cărīnaē
pōssīnt īmpĕrĭōsĭūs […]
Ondas novas ao mar hão de levar-te, nau.
Oh! Que hás de fazer? Cuida ancorar então
Firme a um porto. Não vês que
Nu dos remos teu flanco está?
Mastro estrala ao ventar célere Áfrico; [5]
Com vergame a gemer. Sem as amarrações,
Estes cascos mal podem
Persistir no indomável mar.
Já não podes trazer velas incólumes,
Nem teus deuses, por quem chamas de novo em dor. [10]
És um pinho do Ponto,
Das florestas esplêndidas,
Tens louvado, porém, gênese e nome em vão:
Marinheiro em pavor treme na multicor
Popa. Para não dares [15]
Farra aos ventos, alerta-te!
Ontem foste a meu ver tédio fortíssimo,
Hoje um zelo maior surge, e a saudade vem,
Nega as águas que fluem
Rumo às rútilas Cícladas. [20]
Acalanto para Beatriz
Poema: Pietro Marchiori
Querida, dorme, que o meu encanto
de amor te envolve neste acalanto;
no meu balanço tens teu remanso.
Frouxa os dedinhos, desmancha o medo,
que aqui tens sempre mais meu nino e zelo.
Fecha os olhinhos onde o aconchego
tens sempre em ternos pais: aqui não cresces mais.
E cedo, Beatriz, o tempo verás
passar e, feliz, também cantarás
aos filhos de amor o herdado primor.
Na voz levarás a flor divinal
do amor paternal.
Meu bem, dorme em paz.
CODA
Meu remanso, vai sonhando.
Nos meus braços vais ficar,
Dorme em paz, dorme em paz (meu bem).
Meu remanso, no encanto,
Tens das flores a divina:
Tens o amor, flama da vida.
Travessa Lembrança
Poema: Diego Braga
Sou morador da Travessa Lembrança
Cheia de gente em volta e que passa
Muita casinha em descuido, sem graça
Outras florescem festivas moradas.
Moro na rua que nunca se acaba.
Quanta saudade na casa esperando!
Muitas das tardes, cortinas fechadas
Noutras se abrem, sorrisos de pano.
Sou morador desta rua pequena
Brigas e amores não mais silenciam
Brincam crianças na rua serena
Caem das árvores sobras floridas.
Sou morador desta rua pacata
Fora do mapa, calada, escondida
Placas não marcam tal rua esquecida
Sou morador da Travessa Lembrança.