A ARTE MUSAL DO MÚSICA SURDA

Ronaldes de Melo e Souza
Professor – Doutor de Literatura Brasileira do Departamento de Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da UFRJ

Mais do que denominação do grupo vocal-instrumental, formado por Andréia Pedroso (canto), Antonio Jardim (violão de seis cordas), Artur Gouvêa (violão tenor e de seis cordas) e Eduardo Gatto (violão de oito cordas), Música surda designa um projeto pesquisa interdisciplinar, que se desenvolve com o deliberado propósito de recriar a unidade originária de música e poesia. A arte musical se compreende como Musike téchne, a arte das Musas, singularizada pela trindade poetológica da melodia, da palavra e do ritmo. Quem são as Musas? Antes de Hesiodo, as Musas existiam em número de três. Eram veneradas no santuário do monte Hélicon, e chamavam-se Melete, Mneme e Aoide.

As três Musas manifestam três aspectos indissociáveis da natureza e função poética. Melete propicia a disciplina indispensável ao rigor de composição. Mneme prodigaliza o vigor da improvisação e da recitação. Aoide significa o canto, o harmonioso resultado da interação entre o rigor de composição, dispensado por Melete, e o vigor da inspiração, motivado por Mneme. Três em uma ou uma em três, a trindade das Musas constitui a essencialidade da poesia em geral, que se caracteriza pela tensão harmônica do rigor racional e do vigor passional. Na consonância com o princípio unitrino da palavra, do ritmo e da harmonia, Música Surda se compõe e se faz ouvir em memória da potência musal.

No repertório genuinamente musal de Música surda, sobressaem as canções inéditas, compostas pelos integrantes do grupo a partir de poemas de Camões, Cecília Meireles, Dante Milano e novos expoentes da poesia, como Adriano Alves, Diego Braga e Fabiano Hollanda. A extraordinária concriatividade transdisciplinar do grupo decorre da formação interdisciplinar de seus integrantes. Antonio Jardim é músico, compositor, filósofo, doutor em Ciência da Literatura e professor de Poética na UFRJ e de Estética na UERJ. Músico e compositor, Artur Gouvêa é Mestre em Letras. Eduardo Gatto, além de músico e compositor, é doutorando em Letras. Andréia Pedroso, a cantora do grupo, é licenciada em Artes e professora de canto. Todos se irmanam na realização poético-musical de formações instrumentais diversas, patenteadas nos jogos timbrísticos, melódicos, harmônicos e formais.

A bela voz de Andréia Pedroso, por notável exemplo, consegue realizar a poeticidade da variação vivente do ritmo de cada uma das canções. Enfim, necessário se torna salientar que o concerto harmônico do grupo resulta da orientação segura de Antonio Jardim, músico sempre devotado à dificílima conciliação artística da especialização disciplinar e da transcriação interdisciplinar, bastando conferir, além deste CD que se vai ouvir, o CD de sua autoria, intitulado Cantos de memória e lançado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

ZONA HERMÉTICA E MÚSICA SURDA: UMA BREVE REFLEXÃO POÉTICA

Maria Lucia Guimarães de Faria
Professora – Doutora em Poética pela Faculdade de Letras da UFRJ

A gênese da arte é o chamado do poema. Se o poeta esquece o apelo abissal, e, numa zona superficial, – não na hermética, de que fala o poema de Manoel de Barros -, tenta “compor”, vale dizer, arrumar, ordenar o “inconsútil jorro”, que brotou desde profundezas imemoriais, ele desmente a sua abissalidade e esconde o seu travo de treva. O caótico impulso, ele “arranja” numa peça coesa brilhante. Em vez de ceder ao caos, repudia-o; em vez de escutar o silêncio, cala-o; em vez de fazer-se sombra, acende a luz; em vez de imbuir-se da desrazão daquele chamado que é todo mistério, intervém voluntariamente com a razão. No lugar da desordem, instala ordem, e lógica. E ele faz um poema? Faz. Um poema, não o poema. Uma bela composição, que brilha como fogo fátuo, fazendo reluzir tanto ao poeta quanto ao poema: o brilho fácil, a beleza aceita e bem integrada aos padrões convencionais, que as pessoas facilmente reconhecem, admiram, aplaudem.

E aquilo teve grandeza? Não: “o homem não se desvendou, nem foi atingido”. Permaneceu tal qual era. O poema não o transmudou, o poema não o foi. E por quê? Há que, desguarnecido, afrontar-se o vazio. Onde só há nada é que “se intrometem uns nacos de sonhos”. Na zona onde o chamado se insere “faz-se um silêncio branco”. Não com palavras ocas, nem com o dizer comum, cotidiano, banal, nem com a tagarelice ensurdecedora, fala-se do que se revela, irrevelando-se. Aquilo convoca um outro dizer: um que fale, calando, ou que cale, falando, um dizer que traga o caos engastado nas palavras, um dizer que se pertença do estranho, do misterioso, do fugidio. É isto um silêncio branco: se fosse negro, ele seria pura negação, repúdio total. Mas, branco, ele quer ser visitado, manipulado, mexido, expresso, mas como o silêncio que é. Ele quer mudamente falar. O alarido não faz bem ao silêncio. Não se pode falar do que ainda não é com as categorias do que já é, do que há muito repousa na claridade e estabilidade do desvelamento. O silêncio branco convida a dizer o inaudito. Mais: a possuir-se da própria voz do silêncio, cuja fala é um arpejo de crepúsculo, um hausto de noturnidade, um sopro de ocultas fontes.

E como confeiçoar-se a esta dimensão impossível? Ah, é preciso a cada um “morar em seus próprios abismos”, “andar em promiscuidade com os seus fantasmas”, “expor-se às fraquezas e aos desalentos”. Este que assim o fizer se desvendará, será atingido, será marcado. “Desvendar-se” não significa trazer-se todo à luz, mas afazer-se mais à escuridão, ver onde só há trevas, desentender melhor até luzir numa luz inaugural, que é só “débil cintilação, radiância”. Cegar-se, para ver com outros olhos, calar-se, para falar com outra voz, tornar-se surdo para, não propriamente ouvir, mas escutar – o que é um puro cantar sem palavras.

Só quem se dispõe ao nada estará exposto ao poema, que se concebe e se ensaia na zona hermética. Zona “hermenética” não é zona impenetrável – maldade que se fez a esta palavra… – mas zona de Hermes, zona de umbrais e fronteiras, zona de trânsito e metamorfose, suspensa no pérvio, ENTRE o invisível e o visível, entre o mistério e o mito, entre o lá e o aqui, entre o ontem e o amanhã. É a zona em que nasce o poema como aquele que dá passagem a uma excessividade de sentido que ainda desconhecemos.

É precisamente na zona hermética que vem-a-ser o Música Surda. O seu desafio é afinar-se pelo silêncio, a sua vocação, sintonizar com o nada. Avocados por um chamado imperioso e subterrâneo, que se comparece como brotação de sentido, fazem-se surdos a quaisquer apelos superficiais e ligeiros, como condição de possibilidade de se abrirem à “paisagem do imenso esquecimento”, onde se ensaia a música como o dizer daquilo que ainda não é.

O POÉTICO EM DANTE MILANO

Veronica de Araújo Costa
Graduanda em Letras pela Faculdade de Letras da UFRJ.

Há na poesia de Dante Milano um vigor manifestativo de mundo e de sentido que se renova a cada instante. Seus versos são entretecidos por palavras andarilhas de silêncio que não cessam de dizer. Neles, a fugacidade da vida, a perplexidade diante do inaudito, o tempo e a água, o vazio e as estrelas são mais que imagens transfiguradas. Semelhante aos pingos de gotas que se arrastam sedentos de mar, também sua poesia consagra-se na busca ininterrupta pela palavra. Mas não se trata da palavra grandiloqüente, isolada. Trata-se da palavra em sua simplicidade. Somente por perscrutar o motivo poético da palavra é que Dante Milano ultrapassa toda subjetividade e deixa advir o canto que se doando enquanto poesia e canção descortina e convoca a palavra.

No entanto, não é por acaso que seus poemas conclamam a experiência com a palavra cantada. Embevecido e entregue ao saber do bardo, sua dimensão poética está para além do que se permite mostrar. Ela não se basta na mera representação da realidade. Tampouco em descrever e apaziguar os percalços da vida vivida. O culto da memória e a travessia para o poético consumam-se na vigência primeva da sua poética. Como não pensar aqui na experiência que os gregos arcaicos tiveram com a linguagem? No silente jogo de luz e trevas da palavra na linguagem, o ato poético emerge pela ressonância com o silêncio porque a linguagem nunca é, foi ou será expressão. Ela é, em si mesma, força de nomeação. Atenta ao limite que fulgura entre o dizer e o calar, a poética milaniana busca ao que há de mais próprio e profundo no homem. Nela, o desvelo do acontecer inaugural da existência é sempre o instante no qual a vida experienciada se dá.

Uma poesia que descerre um haurir entre homens e mundo é justamente o que encontramos na Antologia poética de Dante Milano – organizada e editada pela EDUERJ -, sobretudo no poema “Música Surda” no qual somos convocados a experienciar a vigência da memória cantada. É enquanto poeta-aedo que seu fazer poético incide em cantar a própria vida deviniente no seu ritmo sonoro e surdo.

INTERLÚDIO

Thiago Almud
Compositor e violonista formado em música pela UNIRIO.

Silêncio! A música ensurdeceu!

Homens muito antigos vieram de remotos oceanos,
impelidos por um clamor imemorial.
Chegaram aos pés do trono onde a Vida se assenta em nós.

São goliardos? São bardos góticos?

Silêncio! Agora está cantando a vestal de cultos desaparecidos…
Ela canta a fortuna, ela ousa contar o que sabe da lua.

Eles não sorriem: são humildes, são calados.

Mas depois de um tempo, ao seu redor, rebentou a primavera.

O Orfeus singt!

Silêncio!

DA PEDRA NASCE FLOR E A MÚSICA É SURDA, SIM!

Kátia Rose Pinho
Doutoranda em Poética pela Faculdade de Letras da UFRJ. Professora Teoria Literária da UFT

Todo nascer é sempre uma epifania. Nasce-se sempre e a cada vez que se permite o encontro com o inesperado. Revelação. O gesto epifânico dá-se pela brotação incessante ou como manifestação do essencial: tempo. Tempo é canto. Canto dos Deuses. Encantamento. Medida originária e, por assim ser, se dá como fio condutor dos poemas apresentados através do canto da Sereia. Não poderia ser diferente. O canto revela a música, surda, a entrelaçar Dois elos que perfazem o caminho não apenas de todo criador mas também de toda criatura: silêncio e solidão.

O tempo tece em silêncio e solidão “paisagens./Do imenso esquecimento”; e se tece nos instantes coados pela memória-rastro de “versos, palavras/ murmúrios, silêncio”, para conformar a presença de portos que não se sabem portos, mas que se fazem enquanto tal nesta rota derradeira que é a da própria vida se realizando na plenitude do viver. Vive-se o tempo certo. Aporta-se no porto certo. Nada além nem aquém. Torna-se o que deve e precisa ser: música, doação colhida nos interstícios de um exercício primordial que se revela fundador como os “riscos na areia com giz” e os desígnios de um deus, lembrando o dizer de Cecília Meireles: “Por meu dom divino faço/tudo a que Deus me condena.”. Precisa-se, porém, estar em “desalinho/ para enfrentar o peso do moinho” e cumprir tais desígnios. Estes não são apenas do poeta, mas de todos que se fazem poeta com e no poetizar, cantor com e no canto, permitindo-se tragar pela solidão e pelo silêncio da palavra-semente. A semente germina o silêncio, em silêncio. Nalgum canto de jardim, uma aranha tece a teia da Moira com o sangue eterno da asa ritmada. Para ver tal teia, no entanto, é necessário morrer-se em versos, consumir-se e habitar a efêmera Província do Desencanto, mais não seja, auscultar a Música surda da vida, das horas em que se borda a finitude com os fios do infinito.

No mais, tudo é um breve Itinerário sem horário pra acontecer: é Ser.

SOBRE A ARTE DE OUVIR INÚTEIS PAIXÕES

Andrea Carvalho Stark
Bacharel e Licenciada em Letras pela UFRJ. Mestre em Teatro e Cultura pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professora, dramaturga e produtora cultural.

Essa música, provocativamente chamada “surda”, é uma das poucas a reclamar uma só arte – atualmente tão inútil quanto as paixões – a arte de ouvir. E é essa mesma arte que faz revelar, inevitavelmente, uma determinada presença: a voz de Andréia Pedroso. Uma voz refinada, diamante lapidado pela sua própria essência e pelos violões de Artur Gouvêa, Eduardo Gatto e Antonio Jardim. Entretanto, há algo além.

Para os ouvidos massacrados – os nossos – ou os virgens – os das crianças e dos estrangeiros – é a voz de Andréia Pedroso um ritualístico de beleza e necessidade de desvelamento. Quem é essa cantora? – perguntou-me um professor canadense assim que acabou de ouvir o Música Surda em uma peça de teatro de minha autoria que apresentei em uma cidade próxima a Montreal, no Canadá. Quem tá cantando, mãe? – perguntou-me a minha filha de 7 anos em um dos bailes-saraus a base de Cd e pipoca que fazemos em casa.

Aquela voz era personagem do espetáculo – um corpo vivo, ósseo, útil e performático como todo o movimento, recurso cênico ou palavra dita no palco. Um poema imantado que atiçou a menina e a fez cantar e dançar. Mas quem é Andréia Pedroso? Não se pode sabê-la sem os violões. Não se pode sabê-la sem a parceria de música e afeto com Antonio Jardim. Tampouco, não se pode sabê-la sem a poesia desse Livro das Canções. Uma dama de saudades? “Eu sinto apenas esta saudade/ versos, palavras/ murmúrios, silêncio” – escreve e canta ela em si mesma. Ou ainda “Cantar de beira de rio/ o mundo coube nos olhos/ todo cheio mas vazio” como ela canta em Cecília.

Talvez, Andréia Pedroso seja a Musa que nos ajudará, finalmente, a descobrir a utilidade de nossas paixões. Por enquanto, resta-nos acolher essa Música dita Surda e ouvir a Musa com a nossa mais pungente arte.

O “MÚSICA SURDA” E A ESCUTA

Manuel Antônio de Castro
Professor – Doutor Titular de Poética do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ

O grupo vocal-instrumental “Música Surda” já traz em seu nome o compromisso radical com a criação, ao se denominar a partir de um paradoxo. Toda criação é paradoxal. Se o nome fosse música e escuta, como seria de se esperar, estaria tudo bem. O paradoxo advém no adjetivo “surda”. Pode a música, o lugar essencial da Voz, ser surda? Pode. Como? Pondo a música em questão como nos advém no nome do grupo e, nela, fundar uma diferenciação. A questão do surda diz respeito à escuta e não à criação da música. E a música é para ser escutada, porque ela é, essencialmente, Voz. A música fala, não o ouvinte. O ouvinte só fala quando escuta e nesta corresponde à fala da Voz da música.

A música como música não é fala do compositor ou do instrumentista. A música, em seu sentido radical de instauradora de realidade enquanto mundo, é sempre Voz do silêncio. Pois o silêncio é a possibilidade de todas as músicas, porque é a possibilidade de toda e qualquer voz. A música, toda música que é música, começa no silêncio, nele se plenifica como sua doação e, no plenificar-se, busca naturalmente o retorno ao silêncio. Originando-se do silêncio, a música não ouve e, portanto, é completamente surda. E somente sendo surda, pois é Voz, é que ela pode dar-se a ouvir. Um tal doar-se da música em Voz não diz aí qualquer som. Será sempre um som enquanto Voz originária. E o que nos advém nesta voz originária? É a própria realidade num mundo novo e original, inaugural. É o que se denomina correntemente criação.

Esta palavra pode nos levar a muitos equívocos, no empenho criativo da música. Tais equívocos poderão ser anulados se nos deixarmos atravessar pelo vigor da Voz da música que, em seu falar, será sempre radicalmente surda, pois ela não fala para ela. E não fala para ela, porque ela é fala e tão-somente fala, Voz. Voz do silêncio. Mas ela fala para nós. Nós é que não podemos ser surdos. Porém, seremos surdos à Voz da música se em nossa escuta só ouvirmos o que já sabemos e vemos e desejamos. Também nós precisamos, para nos abrirmos para a Voz da música, sermos surdos para o que é a sua Voz: Voz do silêncio. Pois a escuta, para ser escuta, deve originar-se do silêncio, atravessar-nos e retornar ao silêncio. E o que nos acontece na escuta da Voz da música, enquanto Voz do silêncio?

A realidade do que somos na eclosão sempre nova do mundo como possibilidade, que a música pode realizar em nós. O que diferencia o grupo vocal-instrumental Música Surda é esse compromisso radical com a criatividade, não entendida como inovações formais, num jogo novidadeiro com o ouvinte. Antônio Jardim sabe muito bem que a sucessão de formas, num jogo do mercado ou num afago ao ouvinte consumista, não doa o novo, porque a verdade do novo está na surdez da música, que deve ser sempre Voz fundada na manifestação do silêncio, isto é, do novo enquanto realidade aparecendo e sendo. Para nós, ouvintes, se quisermos ser con-criativos – e há outra maneira de ser ouvinte e não mero consumista? – só resta o desafio da escuta da Voz do silêncio. Só resta a música surda. É um desafio para o ouvinte, mas que recompensará os exigentes que não se contentam em ouvir o já ouvido, em escutar o já tocado e repetido. Toda escuta que é escuta terá de ser con-criativa, dialogal. Esse é o apelo radical e inaugural que o grupo vocal-instrumental “Música Surda” nos lança nesta obra poética. Cabe ao ouvinte a escuta.

O ACONTECER POÉTICO NA OBRA DE CECÍLIA MEIRELES

Jussara Moura Monteiro
Graduanda em Literaturas da Faculdade de Letras da UFRJ

O acontecer poético em Cecília será aqui apresentado pelo único caminho possível: pelas imagens que ali cantadas não se permitem encerrar. A obra de Cecília despiu-se de um simples falar, de um externar simplório para mergulhar nos inebriantes e elucidatórios largos da linguagem, submergindo ofegante de uma poética doce e profunda. Despiu-se de si e cantando aceitou a doação que só pode aceitar quem a ela está apto. A doação maior da linguagem. A poiesis: donatária do ser.

Multifacetada e rica em forma e conteúdo, Cecília aborda questões sobre as quais não se encontram nem se podem encontrar respostas. A produção original resgata o sentido do fazer poético e da vida em si mesma. Ela desenvolve sua poética na exposição do ser humano pelo que o caracteriza como tal e o trabalha sob o vigor do novo, não sendo definição deste “o mais recente”, mas acima de tudo o que traz consigo a força da originalidade, primícia poética e condição sine qua non para o manifestar do ser.

“…
Não digas aos que encontrares
que fui conhecida tua.
Quando houve nos largos mares
desenho certo de rua?
E de teres visto luares,
que ousarás contar da lua?”
Que ousarás contar da lua?

O ser desassemelha-se ao corpo. Não haverá questão em um ente enquanto ente, mas apenas quando este se abrir em sentido, e ser. Daí a passagem acima, onde não é aceita uma afirmação de conhecimento quando para tanto faz necessária a abertura. Cecília expõe um ser que só é enquanto não é, pois também é ser deixar de ser, onde figurará o silêncio mais intensamente que a palavra, a morte mais impregnada de valor que a vida, a angústia mais incitante às questões que a felicidade. Essa trajetória vista por um novo referencial não muda o trajeto não-ser/ser/não-ser, mais que isto realoca poeticamente o ser em seu espaço original de ser da liminaridade.

A poesia ceciliana demonstra todas as mutações do corpo em tensão à constância da essência, questiona a própria condição do ser e ao questionar vigora na resposta. Ultrapassa o limite e encontra um novo horizonte desconhecido, maior, a ultrapassar. Aumenta no saber à medida que avança em um angustiante não-saber, mas essa angústia é uma angústia buscada. O não-saber transmuta-se em saber, em um impulso quase involuntário de querer fazer vir à tona uma poiesis pessoal, instante infinito do ser, um kairós necessário à existência, pois quem vive para ser tornar-se-á cúmplice e refém deste fazer ser poético.

O desconcerto do não saber torna-se consolo. Cecília abordará a morte como parte integrante, indispensável e inevitável do ser. Como o é. Todas as dores que possam causar à existencialidade o saber da morte e o envelhecimento, aviso maior de que o percurso está chegando ao fim, são tratadas por Cecília com a angústia que a essas questões são inerentes, mas também com a lucidez de quem entende o caminho e o percorre atento às questões.

O homem não é apenas morte ou vida. Não há essa dicotomia. Há, na verdade, uma tensão entre morte e vida, ser e não ser e para ela, além e a despeito da morte, existe a Memória, grande alicerce do ideário imortal da humanidade. A poeta entende que só na poiesis, somente em um realizar poético da existência é que poderá alcançar a memória e descansar na fugacidade fatídica do corpo. Estará, a exemplo da Memória, realizando-se indeterminadamente fora do domínio do tempo, pois esta, a Memória, não se deve confundir com aquilo que foi, com a lembrança que temos ou que esquecemos.

Para Cecília “Inutilmente o relógio marca o dia e a noite, pois a vida é sem fim. (…) Todos se sucedem, todos se lembram uns dos outros. Todos estão ali à espera dos que chegam”. A Memória não é o realizado, mas acima de tudo é o que foi, é e será, é o acontecer que se tensiona com o tempo sem, entretanto, limitar esse tempo ao cronológico. É nessa Memória que a ela se idealiza e se faz eternizar. Em contrapartida, o tempo será abordado pela sua fugacidade, ligado cronologicamente ao mutável, ao findável, ao passageiro e ao mesmo tempo valorizando o instante como lugar da realização poética.

O cantar na poética ceciliana é, portanto, um cantar que vigora, tão necessário a si quanto o é imperativo. Ao poeta não se permite escolher sê-lo ou não. Ele o é por uma doação da linguagem e essa doação se faz diálogo por meio da poesia. Abordar poeticamente as questões é tê-las todas para si. Em Cecília ser poeta é estar além do estado de espírito, é reinventar a vida. No CD que acompanhamos com estrema felicidade podemos perceber mais do que nunca que a poesia de Cecília Meireles é e sempre foi música e que o trabalho do Música Surda é uma bela e profunda poesia.

PEDRA SONORA

Paloma Espínola
Cantora e compositora, formada em Letras pela PUC

Desvelar a música por trás das palavras,
levantar o véu silencioso dos versos,
o som que se esconde naquilo que revelam,
o murmúrio que corre entre as suas sendas,
para então distribuí-los em canto: encanto de violões entrelaçados,
cordas que se amalgamam, deslizam, transcorrem,
costuram a rede onde a poesia descansa.
Assim é o Música Surda,
sabedor da misteriosa alquimia de decifrar a pedra poética em luz sonora.

A POESIA DA CANÇÃO

Diego Braga
Mestrando em Poética da Faculdade de Letras da UFRJ

Em cada nome cantado repousa uma fuga: eis a tênue linha que dá os contornos à poesia da canção. Nos entornos do nome cantado, ali, somente ali, naquele lugar sem espaço – em que a mera extensão recupera a ambigüidade da tensão – e naquele momento em movimento – em que o ritmo corporifica a retenção – apenas aí pode a poesia se dar à canção. Mas, como?

Na complexidade da sua exposição – qual mãe generosa – o nome cantado é a pregnância do livre nascer: universo que surge, contudo, na simplicidade da imposição musal. Ele, assim, é mais que nada, e menos que algo. Seu aceno é a cada vez uma eterna despedida, que deixa a força toda do pensamento entregue à memória. Quando nos acena e foge, a poesia se dá à canção, porque se dá à memória. Aí ela permanece.

O que preside à sua gênese? Ora dissemos: o encontro. Outrora dissemos: o confronto. Ainda assim, nos saltos e malabares de seu jogo, a canção enlaça os mundos que a poesia desenlaça, a todo tempo mostrando que em cada encontro há um desencontro e em cada confronto não somente um embate, mas também um empate. Esta indecisão nos mantém atentos a cada um dos lances do jogo das tensões e retenções poéticas da canção.

Neste jogo, cujas regras, como as de toda brincadeira, são apenas o limite inventado da mais pura liberdade, o importante não é resultado. Não há resultado. Porque o encantador empate entre poesia e canção acaba sem terminar. Acaba, mas não termina, porque – como jogo que é – na mais vigorosa tensão dá-se o silêncio. O silêncio durante a canção que vibra no nome cantado: eis a tênue linha que dá os contornos à poesia da canção, pois a Música é Surda.

ENCONTROS

Antonio Jardim
Compositor, Professor da UFRJ e da UERJ

Em minha vida de músico, de compositor muitas vezes mudei de linhas de trabalho. Todas as opções e todas as mudanças compõem o que eu chamo talvez um pouco pretensiosamente de – minha poética. Isto é, o meu modo de lidar com aquilo que me escolheu para que eu dedicasse a minha vida. De todas as mudanças pelas quais passei este trabalho é talvez o mais relevante de todos. Os encontros que possibilitaram o Música Surda são todos muito especiais.

O Música Surda se mantém, na plenitude de seus encontros, e lança o seu primeiro CD – O Livro das canções – com esta formação: Andréia Pedroso, com sua voz límpida e emocionada e uma musicalidade de nos emocionar, com o Eduardo Gatto, seu oito cordas e seu extraordinário senso de criação como intérprete e compositor, e com Artur Gouvêa com uma habilidade rara de violonista, improvisos sempre imprevisíveis e compositor de enorme talento. A eles me junto eu, Antonio Jardim.

Todos esses encontros me são muito felizes. No caminho de minha vida, no entanto, há mais um encontro feliz que não posso esquecer no momento em que trazemos nosso trabalho a público, porque esse encontro se deu e se intensificou à medida que o próprio Música Surda aconteceu e amadureceu. Tão logo conheci a Andréia encontrei também uma pessoa muito especial que aqui quero lembrar – minha sobrinha Ísis Pedroso, tão jovem e que hoje se faz uma imensa saudade pra mim pelo seu carinho sempre presente, pela sua disponibilidade generosa com todos, mas em especial comigo.

No momento em que trago a público talvez o momento mais importante de minha carreira de músico e compositor não posso deixar de fazer menção a este encontro especial e definitivo ainda tão presente e inesquecível pra mim. É pra Ísis todo o empenho, toda poesia e toda música de que sou capaz neste trabalho, neste livro das canções, porque dos encontros que realizei aqui neste cd, minha sobrinha, que será sempre presença vigorosa em minha memórIa de encontros, é o melhor de todos os encontros poéticos de um real que entendo como um poema completamente inacabado como já afirmei nalgum outro lugar.